- agendamos catástrofes

Ela tinha a terrível mania dos planos. Agendava dos momentos de ficar doente, uma precaução para os dias em que poderia dançar na chuva e não chegar rápido o suficiente para um banho quente ou para o copo de água morna logo depois do sorvete gelado num dia quente, até os dias que se entregaria a solidão com uma porção de batatas fritas no sofá e telefone fora do gancho.

Ao acordar, antes de abrir os olhos repassava as ocupações do dia e tentava se lembrar se teria tempo para aquela pedra no meio do caminho, para aquele farol vermelho inconveniente ou para os velhinhos que surgiam em sua frente nos momentos mais atarefados. Levantava. Nada de cinco minutos numa terça feira.

Quando a tarde chegava, como sempre, já tinha tudo cronometrado e agradecia aos céus por hoje não ser dia de passar no supermercado.  Em compensação, teria que alimentar o gato da mulher que vivia em frente seu apartamento, mesmo odiando como ele tentava aranhar suas pernas toda santa vez que tinha que cumprir a obrigação. Devia-lhe muitos favores sim, mas da próxima vez deixaria claro que isso não lhe dava direito de revirar sua rotina daquela maneira.

À noite, em todas elas, chorava. Não do modo convencional, mas por dentro. Duas lágrimas por cada plano falido e levaria o apartamento a inundação, podendo causar sérios danos ao vizinho que morava embaixo. Não, não tinha dinheiro para arcar com as despesas se goteiras começassem a aparecer por todos os lados. 

Um dia seria responsável pelo desabamento do prédio todo, mas torcia que não fosse nem hoje ou amanha. O espaço reservado para catástrofes só estava marcado para dali dois meses, dezessete dias, três horas e quatro minutos. Não tinha tempo para arcar com mais tragédias. Aquelas que ela mesma fazia questão de causar já lhe ocupavam espaço demais no calendário.

Comentários

Renata disse…
Depois do plano c você já deveria saber que a coisa toda não funciona.
Henrique Miné disse…
agora não posso, então, deixar de te parabenizar pelo nome do blog, hehe.
E, graças a deus, rotinas não fazem parte do meu dia, as tragédias sim, mas, enfim, com elas eu até me dou bem.

Bom, e não sei se disse, se disse, acho que esqueci. Mas enfim, to de férias e desempregado, vou aprontar o meme e te mandar, só preciso achar um scanner.

E seu e-mail, se pá, hehe.

beeeijo!
Luís Monteiro disse…
Lindo conto.
E quem diria, a moça dos sem calendários agendando catástrofes...

Boa noite, até.
"_"
Amanda Menezes disse…
Não entendo como as pessoas conseguem ser tão planejadas e como conseguem cumprir o que colocam no papel. Não sou assim, e acho que nunca serei. Talvez um defeito, mas eu vivo minha vida sem precisar de roteiros ;)
Adorei. E tava com saudade dos teus textos.

Beijoos
Amanda Menezes
Laysla Fontes disse…
É engraçado como o calendário, a sistematização das coisas, parece atrair a desordem em determinados momentos. Ainda que a desordem interna. Por não permitir-se àquilo que é espontâneo.

Adorei o conto! Esse tipo de escrita me atrai.

Beijo!

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